quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Da janela do táxi

Cheguei ao ponto de táxi tão cansado de mim mesmo que quando o motorista perguntou para onde iríamos dali, tive ganas de responder que era para irmos embora de tudo. Vamos sair daqui enquanto é tempo, amigo, sair da cidade, sair do país, sair de hoje se possível e até sair de mim mesmo. No entanto, respondi que era para ficarmos na João Pessoa, logo depois da Lopo.

As horas que eu vi passar enquanto esvaziava copos e argumentos entre amigos rumo ao nada, elas se arrastavam dentro de mim apesar de se acabarem tão depressa. No final, eram horas tão vazias quanto aqueles copos sujos, as lentes sujas dos meus óculos, as artérias sujas do meu coração. A minha cama não era tudo o que eu precisava então, mas me servia bastante bem.

Abri a janela do carro que se pôs em movimento madrugada adentro, uma noite tão úmida que fazia, eu de casaco apesar do mês de outubro. Após poucas dezenas de metros percorridos, vejo Vitória caminhando pela rua tão vazia. Passos serenos dentro de uma botina dessas militares, solado grosso, cadarços perfeitamente em desalinho. Tinha os olhos na calçada e a seu lado o antimim, que empurrava uma bicicleta.

Quis pedir ao motorista que encostasse ali, espere aqui parado uns dois minutos, só, amigo, só pra eu olhar essa menina andando noite adentro rumo a lugares que definitivamente não foram feitos para mim. Só queria me resignar dentro daquela noite em prantos, me apossar do vazio daquela rua e observar mudo os passos que Vitória caminharia na calçada, os cigarros sobreviventes no bolso do casaco, os beijos do dia seguinte guardados na boca que desenhava um sorriso tímido. Se o motorista me filasse um cigarro, talvez eu pudesse expelir com a fumaça a vontade de descobrir as partes que Vitória não deixava a meu alcance, ou que eu era inábil para perceber quando elas se mostravam, porque eu estava olhando para o lado errado, com os olhos errados. Ali pela segunda ou terceira tragada eu veria o antimim me mostrar como não havia mistério algum, nenhum truque, nenhuma abracadabra, só havia mesmo uma mulher que gostava de sorrir e de homens que não se ocupassem por demais em tropeçar sobre si próprios.

E aí então eu me sentiria tão barato.

Talvez eu só precisasse mesmo não pensar em nada, nos mistérios, nos silêncios, nas pupilas furtivamente castanhas, em sua vergonha de fazer xixi na rua de frente a um homem estranho que não tinha pudores em urinar a uma esticada de olhos de distância. Não há truques, apenas uma garota tentando sorrir e descolar um pouquinho de diversão nessa cidade. Uma garota que caminhava no sentido contrário e daí coloquei a cara para fora do vidro aberto e acompanhei até onde deu, meros segundos, aquele desencontro. Ao lado dele, ela parecia tão tranquila, tão bonita, como se não fosse obra de um acaso mas a ordem natural das coisas, essa mentira na qual todos cremos nas piores horas.
 
A partir dali, a cena não mais me pertencia porque era intimidade aquela caminhada, uma delicada forma de calor, era tão simples feito dois e dois. Palavras que ela só ouviria das frases daquele moço, assim como a gente, cada um de nós, logo acha um beijo muito próprio quando é uma pessoa que a gente gosta demais de que nos beije e daí surge um olhar particular e particulares particulares demais para que eu generalize. E aí pode ser o modo como um joelho se dobra, uma tatuagem na omoplata, uma joanete no pé esquerdo, a força com que a mão da outra pessoa vai se agarrar aos seus cabelos.

Eu gosto de pensar em Vitória de pé, sem as botas, sem as meias e com um último cigarro aceso em mãos. Ela caminha do pé da cama até o cinzeiro numa mesinha a quatro passos dali e desabotoa a calça. Olha para o espaço da cama onde logo irá se deitar, sem o jeans desabotoado. O antimim obviamente não figura no pensamento.

Doce ilusão. A corrida do táxi não deu nem sete reais. 

sábado, 4 de outubro de 2014

Morando na filosofia & coisetal

Havia seus olhos, Vitória, sobretudo.

(Deixem eu me explicar.)

Preciso acender um cigarro, preciso me livrar desse pigarro, e alguém me alcance uma Germana, por favor. Era noite (sempre é noite quando Vitória surge, né?) e dessa vez ela surgiu sem aviso, quero dizer, não surgiu literalmente porque Vitória nasceu há vinte e dois ou vinte e três anos, não sei ao certo, mas isso dela ter nascido em Bento Gonçalves há coisa de duas décadas e poucas eu sei.

Havia o mundo ao redor de seus olhos, mas era tudo tão opaco e quanto mais distante, menos interessante, eu me prendia a olhar suas pupilas em tons furtivamente castanhos e as íris dentro delas, tão redondas e escuras.

Elementar, Vitória não era apenas um par de olhos que circulava na cidade assustando as pessoas que jamais imaginariam que dois olhos, por mais bonitos que fossem, pudessem flanar pelas ruas descolados de Vitória. Mas estou me explicando demais e bebendo contando de menos.

Era noite pois, noite avançada, madrugada a ponto de nós, eu e mais cinco caras, todos embriagados, sujos, sorridentes termos desistido de beber cerveja e saído do bar à cata de uma birosca honesta onde houvesse uma chapa e um xis à nossa espera. Tão adiantada já estava a noite que tais locais já se movimentavam no sentido encerrar seus expedientes, desligar seus fornos e grelhas, descansar seus funcionários e contar a féria do dia, um sábado. Num desses demos as caras e ao negociar com a moça na porta que me explicava o adiantado da hora e o encerramento das atividades eu percebi Vitória, sentada, sorrindo, um xis em mãos, o resto do mundo a seus pés, ainda que dali eu só tenha visto seu rosto mesmo, mais nada.

"Moça, vou lhe dar a decisão", enunciei poeta e caetano para a funcionária, "botei na peneira e você não passou."

A moça riu. Riu de mim. Acho que ela não entendeu o que eu quis dizer.

"Pra que rimar amor e dor?" emendei, mas ela apenas negaceou com a cabeça e nos indicou que havia uma outra lancheria aberta a meia quadra dali, só atravessar a rua.

Ah, miséria.

Vitória ficou lá dentro e nós caminhamos aqui fora para a outra lanchonete porque poesia é bom mas um xis quatro queijos enche a barriga feito poucas coisas mais. Rimos em conjunto e até tivemos a desfaçatez de pedir uma derradeira cerveja junto de nossos lanches de final de jornada.

Sem Vitória, sorri ali da minha falta de graça e da noite que logo ia virar dia, deveria estar esperando sua Vitória caminhar para casa, os gastos sapatos baixos de Vitória e seus caminhos que me desencontram. Mordisquei meu sanduíche desejando que cada naco pudesse se transmutar nas ancas, nas bochechas, na nuca escondida pelos cabelos de Vitória. A ideia de Vitória em mãos pedindo por mordidas e sorrindo com todos os seus dentes, me oferecendo a coxa, levantando a blusa e apontando o umbigo. Caminhando feito gueixa e resvalando um ombro nu ao alcance de meu nariz.

Ela não estava ali, pois. O corpo dela não ficava marcado de lábios e mãos carinhosas. Eu jamais saberia, ora vai mulher, a quantos você pertencia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Rhynocette

A mulher em cena naquele quarto, naquela tarde, naquela cama, naquela nudez que somente a ela poderia pertencer, exercia com talento uma delicada forma de poder sobre mim. Seu nome era Taís e ela tinha os cabelos muito negros e desajeitados, quimicamente obscurecidos e ainda assim cacheados por natureza. Eles desciam até o seu redondo queixo, que parecia inseguro. Olhos castanhos muito vivos e abertos conspiravam com narinas dilatadas e lábios que pareciam trair suas ascendências germânicas completavam o rosto de Taís.

Eu também estava nu ali, sob o corpo de Taís. Seu rosto veio de encontro ao meu e seus dentes se prenderam a meu lábio inferior, com a doçura de quem peca por gosto. Ela manobrou a pélvis de modo que sua buceta recebeu o caralho, esse caralho cansado que é meu, como se fosse um caralho novo, zero bala. Os pentelhos de Taís me arranharam a glande e a língua de Taís mergulhou dentro da minha boca. Dentro daquele beijo longo, os nossos quadris foram negociando com nossos sexos um encaixe ideal – ela querendo fricção e dureza, eu querendo a profundidade molhada.

Taís voltou para a sua majestade sobre mim após o longo beijo que resultou na penetração que a gente buscava um no outro. Naquele instante ela me olhou lá de cima como somente costumava fazer para os vídeos onde Alex Turner ou Joshua Homme aparecem empunhando ameaçadoras guitarras e trajam casacos de couro impossíveis ao alcance da humanidade terrena. O olhar de Taís durou meros segundos, menos que décimos, serenes átimos, mas existiu e eu registrei. Alguma coisa muito certa eu estava fazendo ali. Aquela percepção se juntou ao reino dos sentidos que me encharcava a piroca e de súbito eu não era mais um sedentário funcionário público que pesava quarenta quilos além do ideal, defasado por anos de álcool e tabagismo e sono irregular; não, eu era exatamente o homem que eu gostaria de sempre ter sido e aquela mulher estava prestes a ver as coisas das quais eu era capaz quando de pau duro.

De sua majestade, ela me ofereceu o peito na boca e então começamos a literalmente foder. Claro que o segundo período da frase anterior contém mais uma ideia mentirosa do que qualquer outra coisa, pois que já estávamos fodendo desde antes do primeiro parágrafo, mas o que quis dizer é que agora os dois percebíamos que não seria uma trepada de verão, dessas que a gente goza e depois se limpa e dali a uns tempos a gente nunca mais vai lembrar, se demorou, se foi rápido. O ambiente estava pesado e os corpos leves. Taís regia seu corpo sobre o meu com a precisão das supermodelos inglesas, a despeito de não sofrer de anorexia ou bulimia como é a regra entre as caniças magrelas internacionais. Taís possuía uma vastidão corporal com seios que jamais caberiam inteiros na minha mordedura e ancas que ultrapassavam as palmas de minhas mãos, além de um tesão que decerto caralho algum poderia dar cabo solitário. Eu precisava ser realmente sagaz para satisfazer aquela mulher, fazendo uso de cada recurso possível, dos fios de barba ao fio de voz.

Indo um pouco mais além do mero plano físico, se me permitem a digressão, ela emprestava toda uma graça a seus movimentos de maneira que, não sei ao certo, mas é uma boa aposta para quem quiser saber o que diabos havia naquela mulher para me despertar a curiosidade, a vontade, e por consequência analógica, a peia. Nem só de pão vive o homem, nem só na carne acontece a vida. Assim como seus quadris, aqueles olhos castanhos muito vivos (e as narinas que dilatavam, e a boca que beijava e mordia) não mentiam sem antes nos convencer de que neles havia uma verdade a ser lida. Taís dançava e sorria quando o fazia, ao sorrir na dança procurava o meu olhar para que ele fosse devidamente seduzido e eu quisesse continuar a querer mais dela - mais música, mais mistério, mais. Nessas horas, Taís me dava vontade de rir à toa (e não era à toa, era porque ela estava me fazendo feliz, mas essa digressão já começa a se perder em si, peço perdão pelo vacilo.)

Ela me fodia quando me dei conta do quão linda estava naquela tarde, naquela cama, dentro da sua tão própria nudez, a comandar a minha masculinidade a serviço do tesão que possuía. A graça. Os quadris. Os escuros bicos dos peitos. O desalinho dos cabelos e do tempo. Quis dizer a ela naquele instante que a adorava vestida de jeans e blusas justas, ver o desenho da carne e dos excessos no tecido, aqueles excessos que melhoravam tudo tanto. Ela me lembrava uma versão pornográfica da rinoceronte de Madagascar, o desenho animado, só que eu realmente não sabia como elogiar uma mulher a partir de uma rinoceronte, por mais que fosse uma rinoceronte ficcional e sorridente que se remexesse muito. A Taís que me aparecia ali era uma delícia, mas aquela delícia exótica que me excedia as palavras, tal e qual a personagem das telas excedia os traços. Aquela seria uma tarde de excessos, ao contrário dessa narrativa, que paro por aqui antes que Taís anuncie o gozo, o primeiro deles, na abertura de sua boca que enunciaria em viva voz o desejo por mim, por mais, por nós.

A mulher em cena naquele quarto, sobre seus quartos, sobre mim, sobreveio.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Dentro dela

Aquele par de pequenas mãos se retorcia feito uma bailarina que buscava a vértebra impossível sobre o palco, um travesseiro na cama desarrumada pelos nossos corpos dentro daquele quarto onde Priscila dormia, ao menos na maioria das noites. Fazia frio naquela manhã em Porto Alegre apesar de agosto e quase setembro, uma daquelas alvoradas de céu pleno que justificam janelas abertas. Eu estava prestes a redescobrir o mundo pelas mãos de Priscila.

(Ela tinha pequenas mãos e pés compridos e magros, as unhas negras-negras, os lábios sob forte vermelho, trazia da adolescência alguma rebeldia no sorriso e em um piercing que brilhava pouco abaixo da vista direita, em cima de uma das bochechas, os cabelos longos e muito escuros, suaves omoplatas, perversas clavículas e não naquela ocasião mas com frequência marcante cílios postiços e fortes sombras nos olhos. Fumava marlboros vermelhos e preferia Stooges a Chico Buarque. Quando criança queria ser fada-madrinha, porém acabara prestando vestibular para antropologia. Contava em seu corpo naquela nascente manhã sete tatuagens.)

As mesmas mãos, horas atrás, seguravam um par de latinhas de cervejas levemente ordinárias com a graça dos embriagados enquanto Priscila atravessava a transatlântica sala da casa dos pais de Rubão, um amigo em comum riquíssimo e que gostava de dar festas sempre que seus pais viajavam. Eu estava na festa porque nos últimos quatro meses eu estava trabalhando em turnos diários de mais de oito horas em uma assessoria de imagem que cuidava de políticos - ano eleitoral, quando a gente ganha dinheiro - e precisava de diversão, qualquer diversão, mesmo diversão melancólica. Priscila abriu seu melhor sorriso, que acerto era aquele batom vermelho!, exclamando meu nome em seguida pois que ela era uma dessas pessoas que exclamam.

Priscila gozava de relativa fama entre nosso círculo de amizades, pois havia sido fotografada nua em uma revista de distribuição nacional há quatro edições atrás, era uma tripgirl, para aqueles mais entendidos. Ela fez questão de me enviar para casa pelo correio uma edição autografada da revista. Pude quase sentir o olhar de cinco caras que conversavam próximo a mim quando ela exclamou meu nome, me oferecendo uma das latinhas e um estalado beijo no rosto tão exclamativo quanto, aqueles caras vestindo calças skinnies e barbas aparadas por especialistas. Ela fez um tipo de olhar diabólico e completou o beijo com uma voz rouca, hoje você é meu, Leandro, todo meu. Sete latinhas, duas doses de tequila e três taças de espumante mais tarde eu era dela literalmente de tal modo que ela interrompeu o beijo de língua para ordenar que fôssemos para sua casa, aquela festa já tinha dado o que tinha que dar - agora é a minha vez, ela disse piscando um olho.

(Bem antes de ser tripgirl, quando ainda contava apenas quatro das atuais sete tatuagens, Priscila me foi apresentada numa mesa de bar pelo seu então namorado. O namoro já estava em frangalhos, porém, vim a saber quando a encontrei uma semana depois sozinha numa sessão de cinema, que virou uma esticada na lanchonete da esquina para comer um xis e mais três cervejas. Foi quando de fato surgiu a amizade, a intimidade, as trocas de emails, uma cumplicidade própria de nós dois. Houve também algum flerte e beijos trocados em uma noite de chuva, porém nada de maior consequência até então.)

Estávamos agora em seu quarto, a claridade do dia atravessando a janela e atingindo a nós, eu de joelhos e ela de gatinha, a bunda arrebitada contra minha pélvis, as costas tão nuas e suas mãos, voltemos a elas, pois é na dança impossível executada pelas falanges das mãos de Priscila que descobri, antes sentindo numa vertigem, que aquela mulher tão linda estava prestes a gozar. Havia, decerto, algo em mim, um certo orgulho de macho pelo fato de Priscila, capa de revista & matéria de desejo dos homens que a conheciam, ser aquela mulher diante de mim, como havia sido na festa antes quando caminhou de mãos dadas até o táxi, me agarrando no elevador e contra a porta de seu apartamento logo em seguida. Havia a vitória sobre aquelas calças skinnies e barbas bem feitas e seus celulares multifuncionais e seus carros importados e seus tumblrs que eram acessados e comentados pela minha chefe. Havia alguma raiva e rancor. Havia.

Só que havia Priscila e naquele instante, pela primeira vez, me dei conta de que só havia Priscila e mais nada além de Priscila e seu corpo, Priscila desnuda, Priscila que se oferecia a meu prazer, Priscila que cerrava um dos punhos e esmurrava o colchão e logo após a cabeceira da cama, a vertigem de mergulhar fundo em Priscila e suas costas nuas, seu cabelo em desalinho, suas omoplatas agora dissolvidas em carne, Priscila, a mulher a quem eu penetrava e agora se mostrava mais viva do que eu nunca pudera compreender. A outra mão se estatelou na cabeceira e a mulher pressionava com força a madeira com os dedos abertos, os músculos do braço direito retesados e então a cabeça se levantou do travesseiro para que sua voz me alcançasse com um comando, vem.

(Há algo fascinante na imagem de uma mulher gozando. Os franceses, por exemplo, denominam o orgasmo de La Petite Mort, A Pequena Morte, talvez porque, como na morte, o corpo atravessa uma experiência de verdade física absoluta. Essa verdade, expressa em músculos e líquidos, atinge o nosso corpo, nós, os homens, com uma clareza instantânea. É óbvio e até notório que mulheres fingem orgasmos quando lhes parece conveniente, porém a experiência verdadeira é de outra ordem. Pobre do infeliz que trepa tendo em vista apenas seu particular e ridículo pênis, esse pênis mesquinho que jamais chegará a pica, caralho ou pau. Perde o melhor da festa: a mulher. Não existe nada mais gostoso do que uma mulher, caras, salvo uma mulher em vias de gozar.)

De algum modo eu fui hábil o bastante para decifrar os signos que ela me oferecia e eu sabia que a ordem, vem, ela repetiu já com menos voz e mais vogais, dizia a mim para manter o ritmo alterando a força, ela queria me sentir mais exato, mais bruto, o choque contra suas ancas, o atrito do músculo a lhe abrir a buceta, ela queria tudo, queria tudo porque eu era dela, todo dela. Foi pouco após eu enrijecer o ritmo que o corpo de Priscila, a loucura de Priscila, aquela pequena morte de Priscila tomou conta de toda a situação e vislumbrei num átimo cada vértebra, cada feixe de músculo, cada dobra da pele se unir num movimento preciso que a fez grunhir e cegar e me prender tão inteiro e firme dentro dela que a minha própria razão foi exaurida naquele movimento e só me restou o instinto mais básico, de me agarrar à sua cintura e com seu nome caindo de meus lábios, jorrar.

Levei algum tempo extenuado a seu lado, buscando oxigênio, buscando palavras, buscando um novo centro de gravidade para o homem que eu era então, aquilo que eu havia sido antes de Priscila buscar o meu corpo para aconchego e calma. Eu poderia jurar que ela sorria, um riso que eu reconheci imediatamente inédito porque nosso, e aquela manhã nunca mais seria outra manhã, aquela Priscila já devia ser a minha Priscila, e ela seria a minha Priscila pelo tempo em que nos amássemos e até o dia em que não nos amássemos mais eu só seria feliz de verdade na condição particular de estar dentro dela.

domingo, 3 de agosto de 2014

Desculpaí

Por que sinto saudades dessa pessoa que mal conheço e nunca encontrei? Não sei.

Mas sinto. Sintomas.

O abraço, o sorriso, o tom de voz num domingo de preguiça e ressaca e calma. Não conheço, nunca vi, só posso imaginar e mesmo assim imagino pouco, não é meu forte imaginar, eu só sou bom em ver as coisas e tentar entender - e nem muito bom nisso fiquei sendo, uso óculos, tenho surdez parcial, sou meio burro também. Aí vou lá no Facebook e favorito fotos antigas, de um tempo em que a gente não se falava por essa internet tão vasta, tão cheia de futricas mas que também coloca essas pessoas no nosso caminho.

Tenho isso de sentir falta de gente que não conheço, ou conheço pouco. De gente que nunca encontrei pessoalmente ou de propósito. Sinto essa falta dela hoje e não consigo nem levantar do computador pra tomar um banho ou fazer um café. Complicado isso.

(Pelo menos levantei e fui fazer o café. Vamos continuar, agora com café.)

Me sinto meio leso quando esse tipo de coisa acontece. Como se ter trinta e seis anos de vida e seis fossem a mesma coisa, no final das contas a gente só precisa mesmo é estar perto de alguém que a gente gosta. O resto é detalhe e prataria, prataria fina ou prataria reles, mas prataria. E aí me pego sozinho de cuecas vendo que não adiantou nada viver os tais trinta e seis últimos anos porque não aprendi a úncia parada que realmente importa nessa vida, cativar alguém a ponto de não estar sozinho neste domingo agora. Meio ridículo e dramático, porém, foco, a mensagem é que todos precisamos de alguém por perto.

Sou da turma que se emociona com o Lester Bangs conversando de madrugada com o William Miller pelo telefone porque ele está sempre em casa, he's uncool. “The only true currency in this bankrupt world is what you share with someone else when you’re uncool”, não é verdade? E também tem aquela frasezinha do Nick Hornby em Alta Fidelidade - “People worry about kids playing with guns, and teenagers watching violent videos; we are scared that some sort of culture of violence will take them over. Nobody worries about kids listening to thousands - literally thousands - of songs about broken hearts and rejection and pain and misery and loss.” Sou dessas pessoas aí que citam ficção como se fosse um tratado sobre a vida, como se o filme ou o livro fosse sobre a minha miserável existência, idealizo mulheres, idealizo as coisas que mulheres me dizem e me fazem, idealizo pra caralho e depois faço algo bem fora do prumo para tentar ficar em paz comigo mesmo e a minha falta de sentido, como beber muito, escrever em blogs, escrever em blogs depois de beber muito.

(Acho que preciso de mais café.)

E daí essa falta que ela me faz, mesmo que eu nem saiba o nome dela direito. Mesmo que eu não saiba direito o que fazer diante disso tudo, se devo fazer qualquer coisa, se deveria apenas tomar um banho e ver tv ou passear com a Risoflora na Redenção porque faz uma dia tão bonito e eu sou uma pessoa avessa a sol, multidão, janelas. Sou uma pessoa avessa e muito mal resolvida, sou essa pessoa que escreve bem e fala mal, olhando pra baixo, calando as palavras que preciso em troca das que consigo. O que eu diria pra ela se pudesse agora? Diria qualquer coisa?

Acabei cometendo esse texto. Eu precisava. E o jogo do Flamengo é só mais tarde. Desculpaí.

sábado, 26 de julho de 2014

Um homem (velho)

O relógio do estúdio já acusava quase meia-noite, Horácio viu de soslaio, quase distraído. Estava concentrado e ao vivo no ar, ele que era uma das grandes atrações de uma mesa redonda de futebol que era transmitida toda quinta-feira há dez anos, num desses canais de tv a cabo focados em esporte. “Horácio Almeida, suas considerações finais por favor” anunciou o jovem apresentador que fazia as vezes de mediador. Horácio olhou para a lente da câmera 2 e falou brevemente, a voz cansada e insincera, porque não faria muito sentido que ele anunciasse perto de meia-noite que não esperava mais quase nada de bom nessa vida, a não ser, quem sabe, que pudesse viajar mais uma vez para Itaparica nas próximas férias. “Vamos ver se dá certo a volta de Carlos Otávio ao meio de campo do Flamengo, esse jogador que surgiu há dez anos como promessa, rodou a Europa, a Ásia e agora volta ao Brasil. Tomara.” Sorriu ao final, sacramentando a mentira com cinismo.

Horácio não era homem de mentiras. Tinha quase completos 67 anos e estava na prática do jornalismo desde cedo, com 19 anos já dava expediente nas redações cariocas. Aos 21 descobriu um esquema de fraudes que custou a carreira de um coronel do exército e três meses preso nos porões na Rua da Relação. Ao cabo do período em que esteve preso, fugiu para o exílio de onde só conseguiu voltar ao país com a Anistia, onze anos depois. Desde então, Horácio é uma das grandes vozes do jornalismo esportivo nacional e referência para estudantes de jornalismo e focas em geral, é um desses caras chamados para palestras, formaturas. Trocou o Rio por São Paulo há quinze anos por conta do trabalho e da segunda esposa. Encontra-se em seu terceiro casamento e em sua quarta tentativa de largar o tabagismo.

As luzes se apagaram no estúdio ao final da transmissão e Horácio deu um grande suspiro. Que semana desgraçada, ele pensava consigo. Em pleno 2014 ele ainda precisava ler no noticiário gente passando pela situação de ser detida em inquéritos montados de forma pelo menos questionáveis. Quase trinta pessoas, um fuzuê, teve gente pedindo asilo político no exterior. Horácio lembra da campanhas das Diretas, lembra da fundação do partido que está no poder em Brasília, lembra que conhece muitas das pessoas do partido que poderiam vir à cena e perguntar, ao menos, qual é? Ele conhecia alguns dos manifestantes prontamente levados à estampa de suspeitos e terroristas; dois deles haviam sido seus estagiários, de uma outra ele havia sido editor-chefe.

Na seara do futebol, onde Horácio labuta com seu jornalismo, a CBF preferiu ignorar a goleada vexatória que a Seleção tomou na Copa, dentro de casa, os clubes falidos por adminastrações escabrosas, os jogos modorrentos em estádios vazios, as torcidas organizadas transformando clássicos locais em batalhas urbanas e apenas nomeou um cidadão simpático a quem estava no poder da confederação para comandar a Canarinho rumo às Olimpíadas e pra próxima Copa. As notícias ruins choviam, e ele se abateu com elas – raramente acontecia mas dessa vez aconteceu. 

Levantou-se da bancada e caminhou para o elevador, em silêncio, deu um aceno aos outros três colegas de bancada já de pé, mas estava meio flutuando em seus próprios pensamentos. Meio grogue. Estava aguardando o elevador chegar ao andar para passar na redação, dois andares abaixo e conferir se a sua esposa havia ligado. Helena, esposa de Horácio, tivera uma indisposição estomacal durante a noite e o sono do casal quase não houve – o que certamente contribuiu mais um pouco no estado de borocoxô do velho jornalista.

Um dos colegas de bancada, o Rubens, um amigo desde os anos 70 na verdade, o alcançou. “Tudo bem contigo, cara?” Horácio fez um meneio com a cabeça que não disse muita coisa. “Dormi mal, a Helena vomitou a noite toda, quase não venho pra redação hoje. Mas essas notícias aí das prisões, eu precisava saber mais detalhes, liguei pro Souza e pro Dedé lá no Rio, mas eles desconversaram e tal. Isso me deixou puto. E triste. A gente se conhece há trinta anos, caralho.” “E você não falou comigo antes, cara?” “É, sei lá, desculpa, Rubão, estou nada bem hoje. Você viu no ar, foi foda.” E silenciaram. Rubens deu um tapinha nas costas do amigo e ambos entraram no elevador. Desceram na redação, já vazia. Só alguns produtores presentes arrumando material pra última edição do noticiário que já estava no ar. “Aquele chopinho hoje, Rubão?” Rubens assentiu com um polegar em positivo – era uma tradição não escrita dos dois passar numa choperia que ficava a duas quadras da redação toda quinta após a mesa redonda, uma garantia de que quando se estranhavam no ar, a amizade se conservava mesmo assim.

XX----XX

Quatro chopes mais tarde, Rubens disse que precisava ir pra casa. “Você também, rapaz!” ele brincou, tentando animar o moral de Horácio. Dividiram a conta e Rubens saiu dali, indo em direção ao ponto de táxi próximo. Horácio permaneceu sentado, era dos poucos bares na cidade que não recolhiam suas mesas externas depois de meia-noite. Pediu ao garçom que passava ali por um cigarro e fogo. “Mas você não tinha parado, homem?” “Só esse, juro.” Acendeu e tragou como se outra vez fosse adolescente e estivesse descobrindo o gosto ruim que vicia tão fácil, uma tragada com anos de experiência porém. Estava levemente frio e Helena já estava dormindo, ela mandou um email para avisar que estava melhor mas não iria esperar acordada até ele voltar. Daquele ângulo, a cidade não parecia monstruosa. Daquela mesa, a vida parecia menos triste.

Sentiu uma súbita vontade de caminhar até três quarteirões adiante até a Doutor Arnaldo, mesmo no adiantado da madrugada e do perigo que é caminhar por São Paulo sozinho. Ali, perto de uma padaria, foi onde ele viu pela primeira sua Helena, numa passeata de funcionários do Clínicas. Helena era médica. Fez daquela padaria um ponto de lanches durante suas tardes na esperança de que a moça passasse por ali novamente, o que aconteceu quase um mês após. O relacionamento foi se construindo e ao cabo de um ano e meio estavam casados. Quando se sente para baixo, aquele local é uma espécie de ponto de fuga mental para ele. Caminhou sem pressa, saboreando a fumaça, olhando os muros pixados.

Vinte e cinco pessoas presas, ele se repetia mentalmente, uma delas tinha sido acusada porque o namorado tinha quebrado uma vidraça de banco e ela estava junto. Ele lembrava que o ministro da justiça havia sido seu contemporâneo de exílio, porque na época deles ambos defendiam coquetéis molotovs e roubos a bancos como forma de desestabilizar a ditadura. O agora ministro havia inclusive planejado alguns desses assaltos, a despeito de ser uma revelação que só o pessoal da militância sabia com mais detalhes. O ex-guerrilheiro havia defendido a atuação da polícia e dos magistrados nas prisões em entrevista para uma revista semanal. Logo ele, que se orgulhava de uma foto sua de submetralhadora na mão.

Ele tinha dois filhos na idade de estar nas passeatas contra a Copa e estarem fichados, presos. O Adriano, mais velho, morava em Londres e o César, um ano mais moço, era músico – paixão de Horácio, a música – e estava viajando em turnê, nenhum deles prestou apoio fora do universo de compartilhar postagens em redes sociais. Horácio comandou a cobertura da sua equipe para mostrar as manifestações, a ação policial. Abriu espaço para algumas figuras que se destacavam entre os milhares para falar a seus microfones. Aquilo era alguma coisa nova, o país gritando tão alto, tanta gente, uma repressão tão violenta porque decerto o governo não imaginava que pudesse ser verdade. Quase ninguém compreendia o que se passava e todos tinham uma explicação pra vender.

Estava quase no local quando se deu conta de que faltava alguma coisa no cenário. A padaria, claro. Fazia seis meses que não passava por ali prestando atenção para reparar que o imóvel onde funcionava a padaria não existia mais. Diante da madrugada, contemplou os tapumes que cercavam o agora canteiro de obras. Dizia uma placa que ali seria erguida uma nova agência bancária dessas coloridas, como se fosse um parque de diversões. Uma dessas agências bancárias cercadas de vidros, como se não houvesse nada lá dentro a esconder, nada a temer. Cada porta de vidro daquela valia mais que a dignidade e o lombo de quem apanhava da polícia, a mesma polícia militar que o havia prendido há quase 50 anos.

Mais cedo ele havia dito ao vivo que gostaria de manifestar sua solidariedade aos vinte e cinco indiciados nas manifestações por formação de quadrilha armada e outras barbaridades jurídicas, em especial a três deles – e recitou seus nomes – que havia conhecido pessoalmente na vida de jornalista. “Tudo isso não passa de um grande absurdo”, ele disse ainda, olhos firmes na câmera 2, “num governo encampado por gente cuja origem mais básica na política foi justamente a luta pela volta do regime democrático ao Brasil.”


Queria tacar fogo naqueles tapumes, mas não tinha fósforos. Sentiu-se velho, enfim. Tomou uma decisão: na manhã seguinte pediria férias para viajar com a esposa. O mais rápido possível, antes que Itaparica também fosse demolida.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Uma ligação a cobrar

O que era uma manhã de sono foi interrompida pelo barulho do meu celular que apitava na mesinha de cabeceira. Despertei mais pelo cacoete tecnológico de sempre achar que o mundo me chamava pra participar dele ao toque do aparelho, apesar de ser um dia de folga, sem compromissos marcados. O corpo teve o reflexo de alcançar o aparelho, os olhos se abriram e vi que o número me era familiar. Atendi a chamada.

Primeiro apareceu o aviso de que era uma ligação a cobrar, eu deveria permanecer na linha se quisesse aceitar a chamada. O número era familiar demais, eu sabia disso, só não lembrava o quanto. Aceitei a chamada. Então veio a voz dela, rouca, trêmula, linda, um som de anos passados.

"Oi, gato." "Oi", respondi, ainda não totalmente consciente. "É Esmê, lembra?" Sim, eu lembrava, e agora que saía de verdade do torpor, como lembrava. Esmeralda, Esmê nos tempos de namoro, quando os dois ainda éramos muito jovens para a vida adulta, para morar sozinho e ter as certezas todas, para cometer as cagadas da juventude com a arrogância dos adultos, claro que me lembrava de Esmê, de sua pele preta, do cabelo crespo de orgulho, dos colares e brincos e batons. Pois lembrava. 

"Lembra...?" Ela repetiu a pergunta e na repetição, comecei a ouvir o entorno daquela chamada e havia alguma coisa a mais, a respiração pesada e a fala meio entorpecida. "Lembro... tudo bem? Quanto tempo." Muito tempo, eu me dava conta, cinco anos ou seis. A gente havia se esbarrado numa dessas redes sociais e retomado contato havia coisa de meses, nada demais. Trocamos telefone numa dessas conversas mais por gentileza do que realmente intenção, naquelas de vamos-marcar-uma-cerveja-qualquer-dia-desses sem maiores convicções, éramos ambos um passado do outro e nada mais do que isso. Porém.

"Aconteceu alguma coisa?" Eu tentava me situar naquela ligação, afinal. "Me escuta, não precisa falar nada, mas me escuta." A ficha foi caindo para mim. Eu reconhecia aquele tom da voz de Esmeralda, aquela respiração, aquela iminência de algo porque Esmeralda estava trepando. "Ai, me escuta." A segunda súplica me despertou em definitivo. Após essa segunda súplica então se seguiu alguns pequenos guinchos, a respiração que virava chiado, ela pediu que seu parceiro, seja lá quem fosse, não parasse, não parasse, ela repetia e trepava maravilhosamente. Despertou inclusive a possibilidade que eu julgava morta de Esmeralda novamente.

"Eu queria te falar, sabe" - Esmeralda voltou a falar comigo - "que eu sinto saudades e às vezes sinto até tesão, vontade de dar pra você de novo, de chupar teu pau" - aquilo era surreal demais e eu começava a ficar assustado inclusive, mas não queria desligar mesmo - "só que eu não consigo, ai, isso" - surrealismo e pornografia e o passado se uniram naquele gemido - "e pensando assim, eu acho mesmo que eu não quero, ai, devagar agora, devagar assim". Eu fiz menção de falar e ela me censurou. "Não, não fala, me escuta, me escuta. Eu quis te ligar assim, sabe, eu quis na verdade foder muito bem pra te ligar e te mostrar como era gostoso porque eu sinto saudades mas porque você também era um escroto. Você me comia tão bem e mesmo assim era um escroto, eu só quero que você saiba que eu não vou esquecer mas se quiser você pode ouvir agora o resto, porque isso tá me dando um tesão do caralho".

Emudeci. Emasculei. Do outro lado da linha, Esmeralda pedia enfim mais força, a voz saía do controle, a respiração faltava, já dava pra ouvir também o cara que ela comia. Lembrei então do pé na bunda que havia dado covardemente por e-mail, de ignorar os telefonemas e e-mails dela pedindo uma explicação, do que eu havia sido porque eu acreditava que agora era então outro, e, na verdade, fazia mais força para acreditar do que para me comportar melhor. Quase não consegui me dar conta que Esmeralda falava comigo ao telefone. 

"Me escuta, me escuta agora."